A
importância da cafeicultura de Cantagalo, no
século XIX, deveu-se, principalmente, ao grande
latifúndio adquirido pelos Clemente Pinto,
sendo que, entre eles, o mais ilustre talvez tenha
sido Antonio, 1º barão de Nova Friburgo,
o qual aportou no Brasil, vindo de Portugal, por volta
de 1808, aos 12 anos de idade.
Em 1855, recém-titulado como barão,
declarou, no registro paroquial de terras, possuir
as sesmarias de São José, Boa Sorte,
Santa Thereza, Santa Marta, Santa Rosa do Retiro,
Póvoa, Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora
do Desterro e São Manoel, além de inúmeras
posses de terras, compradas ou legitimadas.
Com a firma Clemente Van Erven e Cia., declarou ter
ainda as sesmarias d’Água Quente, Paciência,
Boa Fé, Santa Julianna e São Martinho,
terras nas sesmarias de São Joaquim, e por
fim, com a firma Clemente & Beliene, uma sesmaria
e meia, onde se encontrava sua fazenda de café.
Considerando-se que uma sesmaria correspondia a meia
légua de terras em quadro, é possível
imaginar a extensão das propriedades do barão.
Ele se tornou célebre depois de construir o
Palácio do Catete, que, após sua morte,
em 1860, foi vendido por seu filho Antonio Clemente
Pinto e, mais tarde, tornou-se sede do governo, durante
a República e até a transferência
para Brasília.
Homem de visão empreendedora, além de
optar por técnicas modernas em fazendas, fez
construir uma linha de trem interligando-as com a
Baixada Fluminense, para o escoamento da produção.
A
família Clemente Pinto preferia uma arquitetura
requintada na construção de suas
moradias. Sabe-se que o 1º barão de
Friburgo contratou mão-de-obra especializada
vinda da França, Alemanha e Portugal, como
arquitetos, escultores, estucadores, gravadores,
pedreiros, carpinteiros, entre outros, para edificação
do Palácio do Catete. Sua paixão
pelo trabalho em cantaria pode ser percebida tanto
neste prédio como nas fazendas do Gavião
e de Areias, em Cantagalo. Os detalhes impressionam
pela delicadeza e, ao mesmo tempo, pela grandiosidade. |
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Quando faleceu, deixou um legado a seus dois filhos,
Antonio Clemente Pinto Filho, futuro conde de São
Clemente, e Bernardo Clemente Pinto Sobrinho, que
se tornaria conde de Nova Friburgo, uma fortuna extraordinária,
que contava 2.183 escravos, avaliados em 1.999.200
contos de réis, 5.904.000 pés de café
e 9.840 alqueires de terras, localizadas em Cantagalo
(6.860 alqueires), Nova Friburgo (2.080) e São
Fidélis (900). A avaliação total
de seus bens chegou a 6.909.371,780 contos de réis.
Hoje, são poucas as propriedades deixadas pelo
barão de Nova Friburgo que ainda se encontram
de pé. Seguem, então, alguns detalhes
de uma delas: a fazenda de Areias. Boa parte do seu
conjunto original de edificações foi
demolida ou destruída pelo tempo, mas o que
resta nos permite acreditar que a vida nesta fazenda,
a administração e o cultivo do produto
mais importante do Império em terras fluminenses
eram de intensa atividade.
Em Areias, o proprietário estabeleceu regras
rígidas para o administrador, tanto no trato
da lavoura como nos cuidados com a alimentação
e saúde dos escravos e na condução
dos trabalhos agrícolas. Sobre isso, não
nos deixa mentir o documento datado de 1870, encontrado
na fazenda e publicado, tanto o manuscrito como sua
transcrição, no livro Negro de corpo
e alma, na ocasião da Mostra do Redescobrimento.
A seguir, apresento alguns trechos que merecem ser
ressaltados, como, por exemplo, o item que trata da
colheita do café:
“(...) sempre se deve colher em 1º lugar
onde o caffé se achar mais adiantado na madureza,
e em 2º lugar onde o caffé estiver mais
carregado. Não he admissível o sistema
de colheita que principia todos os annos no mesmo
lugar, e correr os caffezaes na mesma ordem; o administrador
que seguir esta regra mostra bastante indiferentismo
pelo bom resultado da fazenda e, faz crer que não
quer ter o incommodo d’examinar com attenção
os caffezaes para dar as necessárias ordens.
Está estabelecida a regra de botar todo o caffé
no chão (motivado pela altura dos caffezeiros).
Nos caffezaes novos porem, nos quaes a altura dos
pés não exceder a 12 palmos, deve-se
apanhar logo o caffé nas peneiras; principalmente
no principio da colheita, quando ainda não
tem cahido caffé no chão.
He proibido bater com varas nos caffezeiros para desligar
o fructo, porque ofende a planta e espalha o caffé
para os lados nas carreiras da capina.
Deve-se recomendar aos escravos de apertar o menos
possível a mão para tirar o fructo do
galho, afim d’evitar que se desfolhe o caffezeiro;
e ainda mais cuidadoso deve-se ser, se a colheita
se estende até a primeira flor.”
Feita
a colheita as instruções para o beneficiamento
eram as seguintes:
“Todo o caffé deve ser lavado no mesmo
dia em que for colhido, e logo demanhã no dia
seguinte ser espalhado nos terreiros o caffé
que vem seco da roça e despolpado o maduro,
por isso os lavadores são construídos
para separar na lavagem o caffé seco do maduro.
O caffé despolpado junto n’um monto no
tanque deve assim ficar por 24 horas pa. a parte gommosa
passar pelo processo de fermentação,
afim de poder sahir com facilidade quando lava-se
este caffé; depois de lavado deve ser espalhado
logo nos terreiros; conhece-se o caffé despolpado
bem lavado pela aspereza do grão. O feitor
de terreiros e o administrador devem prestar toda
attenção á lavagem do caffé,
para ver se fica bem limpo, que a separação
do maduro e do seco seja feita com cuidado, para se
obter a maior quantidade possível de caffé...
Despolpar, e para ver que não escape algum
com água suja do lavador; qualquer descuido
causa grande prejuízo. O bom caffé se
faz no terreiro (he um dito) e com toda a razão;
porque o caffé mal tratado no terreiro n’unca
será de primeira qualidade.”
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“O
caffé deveria ser espalhado no terreiro
de maneira que n’unca um grão cobrisse
o outro; porem não há terreiros
suficientes por isso deve-se procurar de aproximar-se
o mais possível a este principio (...).”
“O caffé continuamente deve ser mexido
no terreiro. Em quanto o caffé não
estiver exposto ao sol 8 dias, não deve
ser amontuado, embora apanhe sereno ou chuva:
depois de 8 dias cessa o receio d’elle fermentar,
e então deve-se ter todo o cuidado que
não apanhe sereno ou chuva, amontuando-se
todas as tardes, e nas ocasiões d’ameaças
de tempo (chuva), cobrindo-o à noite com
pano ou sapê. Se derepente ameaçar
chuva, deve-se tocar o sino e a este sinal, todos
os empregados como os escravos devem correr aos
terreiros para auxiliar o ajuntamento do caffé.” |
“Quando
o grão do caffé principiar a tomar cor
verde escuro, pode ser recolhido para o armazém;
no caso de faltar terreiros para secar outro caffé
he melhor deixa-lo no terreiro até que estále
entre os dentes e tenha tomado uma cor verde desmaiada.”
“Embora
elle seja recolhido n’este estado, he necessário
tornar a expol-o ao sol por um ou dous dias antes
de ser levado ao engenho para ser descascado.
Em
geral deve-se olhar para a limpeza no Engenho; observar
a polpa que sahe do despolpador, e a casca que sahe
dos ventiladores, para evitar-se para que não
se pérca caffé por estes caminhos.
Conforme
a força do motor, e quantidade d’agua
nas diferentes estações, deve-se ventilar
por mais vezes o caffé e burnil-o por meia
hora antes de ser entregue ás catadeiras, para
livrar estas da poeira; e duas horas ou mais, depois
de ser catado, até elle ficar com bonito lustro;
o tempo varia conforme a qualidade do caffé.
Como
se exige no mercado a pêlle prateada do caffé
despolpado ser solta em redor do grão (e não
pegadas no mesmo), deve-se socar pouco esta qualidade
de caffé, e mesmo ventilar pouco; está
conhecido qe. este caffé não deve ser
burnido.
A
catagem será feita pr. taréfa, porem
o feitor dos terreiros, varias vezes por dia, deverá
examinar o caffé das catadeiras, e fazer ver
qualquer defeito que observar; d’este procedimento
tira-se as melhores vantagens do que pelo muito castigo
na hora de tomar a taréfa.
Ter
sempre em vista qe. o caffé pa. ensacar, deve
ser bem seco, bem catado e bem burnido, e quando for
despolpado, com bastante pélle prateada em
redor da amêndoa do caffé.
Para
uma fazenda bem administrada deve ter somente treis
qualidades de caffé, a saber despolpado bom,
caffé fino e escolha, qualquer outra qualificação
de caffé, he devido a negligencia na preparação.”
Trazer
à luz, nos dias de hoje, um documento raro
como este, rico em detalhes sobre o cotidiano de uma
fazenda de café do século XIX, é
um verdadeiro privilégio, embora aqui o espaço
não permita transcrevê-lo integralmente.
A fazenda de Areias, e, provavelmente, todas as que
pertenciam à família Clemente Pinto,
devia seguir essas instruções, e para
os estudiosos da história da cafeicultura e
do trabalho escravo no Brasil este documento é
uma fonte das mais preciosas.
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