Escrever
sobre Paula Motta é fácil e difícil
ao mesmo tempo. Fácil porque era homem de muitas
histórias e muitos amigos, amado e querido
por todos, e todos querem falar sobre ele. Difícil
é, com tantas histórias, saber por onde
começar. Neste caso, apelemos para a tradição,
ou anti-tradição, de Machado de Assis,
em suas Memórias Póstumas, e comecemos
pelo fim. José de Paula Motta Filho faleceu
no dia 7 de dezembro de 2008, no Rio de Janeiro, deixando
a viúva Maria Elisa, os filhos Patrícia,
Luciana e Rodrigo, além do neto Victor. O corpo
velado no cemitério do Caju portava 72 anos
de histórias ligadas à cafeicultura
brasileira e também um histórico menos
nobre, e com muito menos tempo, de problemas relacionados
à diabete.
Segundo amigos, todavia, o seu legado não o
acompanhou nessa última viagem. “Eu não
digo que Paula Motta era um homem honrado, eu digo
que ele ainda é um homem honrado, porque, apesar
de ter falecido, a sua obra, o seu espírito,
o seu exemplo, continuam vivos”, resume Almir
Filho, presidente da Associação Brasileira
da Indústria do Café (Abic). São
também de Almir as seguintes palavras sobre
Motta: “Conheci ele no governo, depois na iniciativa
privada e, novamente, no governo. Minha definição
do Paula Motta é a seguinte: um homem que dedicou
sua vida em benefício do desenvolvimento do
agronegócio café. Um homem de vanguarda,
extremamente prudente e conciliador.”
Nascido em Ponte Nova, zona da mata mineira, Motta
estudou em Piracicaba, interior de São Paulo,
onde lhe ofereceram uma bolsa de estudos, em troca
de participação no time de basquete.
“Acho que jogava direitinho, porque fiquei sete
anos na seleção brasileira”, observou
o modesto Motta, em entrevista à Revista do
Café, edição de junho de 2001,
feita por este mesmo repórter. Formou-se, então,
em agronomia, na Escola Superior de Agricultura Luiz
de Queiroz, a prestigiada Esalq. A partir daí,
o jovem Motta seria disputado pelas mais altas esferas
da política agrícola nacional, a começar
pela Secretaria de Agricultura de São Paulo
e depois pelo Instituto Brasileiro de Café,
o poderoso IBC, onde galgaria os postos mais importantes.
Carlos Andrade Pinto, um dos primeiros presidentes
do IBC, que era sediado no Rio, dá seu depoimento
sobre o início da carreira de Motta:
“E chega à Cidade Maravilhosa o Zé
de Paula Motta, para trabalhar no Gerca. Eu acabava
de regressar ao Brasil, depois de concluído
um curso de pós-graduação em
economia agrícola na CEPAL, no Chile. Passamos
a dividir a mesma sala. Do primeiro aperto de mão
até o ultimo adeus sem resposta, silencioso
e triste, no Memorial do Caju, foram mais de quarenta
anos de uma amizade daquelas que o mineiro Milton
Nascimento manda guardar no fundo do coração.
Tive o privilégio de nomeá-lo Diretor
do Instituto Brasileiro do Café e nas inúmeras
ausências, por motivos de reuniões internacionais,
ele respondia pela Presidência. Responsável
pela Diretoria de assuntos agrícolas, representava
os cafeicultores inconformados com a política
de preços imposta pela área econômica
do Governo. O único instrumento à disposição
do Governo para regular as oscilações
nos preços era o manuseio da ‘quota de
contribuição’ - na verdade um
imposto de exportação ou na visão
dos agricultores um ‘confisco cambial’.
Quando, por efeito de geada, seca prolongada, queda
de produção em outros países
ou por simples variações na oferta devidas
ao ciclo bianual do cafeeiro, o mercado internacional
reagia subindo a Bolsa de Nova Iorque, o IBC imediatamente
aumentava o confisco. Eram decisões que afetavam
duramente as expectativas de lucro do setor agrícola.
O Paula Motta, como membro da Diretoria do IBC, teria
todos os motivos para se rebelar contra uma decisão
que, aparentemente, traía os interesses de
seu grupo de origem. Autêntico líder
de sua classe, galgado ao mais alto posto na hierarquia
que ditava os preços que os companheiros produtores
iriam receber, Motta, todavia, nunca cedeu ao corporativismo.
Ao contrário, ele percebia que a única
maneira de viabilizar a cafeicultura nacional seria
implementando uma vigorosa política de erradicação
de cafezais deficitários e abrindo novas fronteiras
agrícolas na Bahia e no Cerrado onde vicejariam
árvores com maior produtividade e sem as dramáticas
conseqüências das geadas. As alterações
eram decididas nas sextas-feiras, quando já
fechara a negociação Contrato C em Nova
Iorque. No dia seguinte, já estava indo o Paula
Motta para o interior, explicar a seus pares a importância
da medida. Eram suas armas a calma, a paciência
mineira e a voz pausada, para convencer e afastar
a resistência dos mais violentos críticos
do governo. Nunca se ouviu dele uma contestação
de índole classista. Estava certo de que os
recursos voltariam, como voltaram, para o setor cafeeiro,
em obras de infra-estrutura e através da política
de sustentação de preços internos.
Os cafeicultores brasileiros acabaram, então,
por reconhecer a atuação do Paula Motta
na Diretoria do IBC como visionária e a ele
devem a pujança atual do nosso parque produtivo.
Foi-se o Zé de Paula Motta, digno em toda sua
vida, e heróico no incompreensível e
abominável sofrimento que suportou nos últimos
dias. Honrado como homem público, por certo
estará discutindo os efeitos do confisco cambial
com o outro santo inspirador do confisco, o São
Otávio Gouvêa de Bulhões, então
ministro da Fazenda.”
E
já que iniciamos a transcrição
dos depoimentos dos amigos de Motta, passemos
para outro, o de Linneu Costa Lima, que conviveu
intimamente com Motta durante o último
emprego deste, como assessor especial do Ministro
da Agricultura. Lima era secretário de
Produção e Agroenergia do Ministério
e costumava almoçar com Motta quase todos
os dias. |
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“Paula
Motta é uma lenda. Desde o tempo do meu pai,
quando ele dirigia a cafeicultura no Brasil. Eu falava
pra ele que eu, quando jovem, fiz um projeto de adensamento
de café e mandei pro IBC e, depois de um mês,
chegou uma carta do IBC, com o carimbo INDEFERIDO.
Cheguei no Ministério e pensei, agora é
minha vingança, hehe. Paula Motta, em Piracicaba,
tinha o apelido de ‘Famoso’, porque era
um atleta admirado por todos, campeão de basquete.
Ele trabalhou no IBC na época em que o IBC
emitia avisos de garantia, que era a mesma coisa que
emitir dólares. Numa época em que não
tinha tribunal de contas. E morreu da maneira como
viveu, um homem simples, sem grandes propriedades
ou dinheiro, o que mostra como era íntegro
e honesto. Eu devo muito ao Paula Motta. Eu me lembrava,
quando fui para o Ministério, que o Pedro Camargo
(o secretário de Produção anterior
à Linneu) dizia que os segmentos brigavam muito
entre si. Então eu cheguei lá e pensei:
a cafeicultura é um todo, ou nós nos
unimos e fazemos uma lista de prioridades, e todos
estão de acordo, ou não temos nada a
fazer aqui. O Paula Motta me ajudou muito nisso, porque
tinha crédito com todos os segmentos. Produção,
indústria, Mauro Malta (solúvel), Guilherme
Braga (exportadores), todos gostavam do Paula Motta.
Amigo e técnico do setor, sempre tinha um conselho
prudente. Sempre conscencioso, com delicadeza. Café
é um negócio muito delicado, sensível,
e qualquer declaração afeta o mercado
internacional. As medidas que discutíamos eram,
portanto, tomadas e divulgadas apenas depois de todos
os segmentos terem conhecimento. Motta também
tinha um relacionamento na OIC muito grande e foi
essencial para a organização da segunda
Conferência Mundial de Café, que recebeu
representantes de todo mundo. Motta é um credor
muito grande, meu e da cafeicultura. A gente almoçava
junto quase todos os dias. Era um companheiro de todas
as horas. Era sempre ele o mensageiro, quando queríamos
advertir um ou outro representante do setor sobre
algum excesso verbal ou flexibiliar uma ou outra posição
mais radical de algum segmento. Quisera cada uma das
atividades econômicas do Brasil tivesse um Paula
Motta. A cafeicultura conseguiu fazer uma política
onde cada setor tinha presença e legitimidade.
Ele era uma figura muito querida e respeitada por
todos. Todos gostavam do Paula Motta, em todos os
estados. Eu estava sempre brincando com ele, lembrando
aquela história do meu projeto recusado. Ele
tinha conexões também com diversos setores
do governo. Era um homem perfeitamente integrado no
serviço público. E nunca era parcial.
Ouvia muito, não discutia com ninguém.
Era um homem muito bom e prestou um serviço
muito importante para a cafeicultura.”
Outro que conviveu de forma muito próxima com
Motta foi o ex-diretor do Departamento de Café
do Ministério, Vilmondes Olegário, que
também aceitou dar um depoimento sobre o amigo.
“O que eu lembro de Motta? Do humor dele, era
extremamente bem humorado. Nas situações
mais difíceis, sempre mantinha a calma. Eu
era diretor do Departamento de Café e o Paula
Motta era assessor do secretário de Produção
e Agroenergia, a gente trabalhou juntos por 4 anos.
Era um caráter ilibado, sempre com otimismo,
e tinha uma capacidade de agregação
muito grande, de acomodar as posições,
no bom sentido. Ele atuava sempre para unir os diversos
segmentos. O CDPC (Conselho Deliberativo de Política
do Café) funcionou com bastante harmonia na
época do Motta, mesmo os interesses sendo contraditórios.
Ele tinha grande capacidade de aglutinar pessoas,
idéias, entidades.”
Contatamos também o exportador Jair Coser,
presidente da Unicafé. Coser conta que conheceu
Paula Motta no tempo em que era presidente do Centro
de Comércio de Café de Vitória
(CCCV) e militava em prol da cafeicultura capixaba.
“Antes de me tornar grande amigo dele, tivemos
atritos, porque Motta havia sido um dos patrocinadores
da erradicação das lavouras de arábica
do Espírito Santo, com verba do IBC, e depois
se posicionou duramente contra o plantio de conillon
no norte do estado. Finalmente, convenceu-se de que
se tratava de um grave problema social e deu aval
para o IBC liberar crédito para o ES. Depois
disso, contudo, nos aproximamos e ficamos muito amigos.
Motta foi, certamente, um dos homens que mais entendia
de café no Brasil”.
José Braz Matiello, também egresso do
IBC, hoje diretor do Procafé, instituição
de pesquisa ligada ao Ministério da Agricultura,
conversou com a Revista e deu o seguinte depoimento
sobre Paula Motta:
“A filosofia dele era sempre contornar, conversar,
dar um jeito de não desagradar ninguém.
Tinha até uma máxima, que era ‘trate
bem os inimigos, porque os amigos, bem, os amigos
já são amigos mesmo’. Dificilmente
falava contra alguma coisa, só se não
gostasse mesmo. Tinha muita habilidade política,
tanto que se manteve em vários governos, sempre
usando sua capacidade de diplomacia. De fato, era
mais embaixador que agrônomo. Desde o início,
sua participação no IBC se notabilizou
mais no lado administrativo e na política.
Foi meu padrinho de casamento. O hobby dele era criar
passarinho: canário, currió, bicudo,
galo-de-briga. Nas horas de vaga dedicava-se a isso.
Currió e bicudo, para quem não sabe,
são os pássaros mais difíceis
de criar. Seu parceiro nisso era o Francisco Imperial.
“
Entrevistamos também Manoel Vicente Bertone,
veterano nas lides da política cafeeira, e
hoje Secretário de Produção e
Agroenergia do Ministério da Agricultura. Bertone
nos contou que conheceu Motta há 20 anos, e
desde então conviveu com ele, “em todas
as fases que tivemos na cafeicultura”.
“Paula Motta era um grande amigo meu. A gente
sempre se encontrava nos eventos de café. Tenho
ótimas lembranças dele. Um cara muito
equilibrado, pessoa corretíssima. A cafeicultura
de hoje deve muito a ele. Ele fez muito pela cafeicultura.
Ele dizia que o ‘café exigia engenho
e arte’, e passou por todas as fases, da administração
forte do Estado para um mercado livre. Era muito habilidoso
no conduzir, sabia compatibilizar as opiniões
divergentes. Pessoa muito gentil com todo mundo. A
verdade é essa. Muitas vezes, ele dizia: em
café ninguém sabe tudo, é preciso
usar as sandálias de São Francisco.”
Por fim fomos conversar com o ex-presidente da ABIC,
Américo Sato. Motta, após o fim do IBC,
trabalhou por muitos anos para a Abic e foi Sato quem
primeiramente lhe convidou a ingressar na entidade.
“Quando eu fui presidente da Abic, o Paula Motta
era superintendente. Eu pedi a ajuda dele em virtude
de seu relacionamento e trânsito com toda a
cadeia café. Ele prestou um serviço
inestimável para a Abic, dentro da minha idéia,
na época, de que a cadeia deveria trabalhar
unida. Com o fim do IBC, que mal ou bem atendia às
demandas de todos, os segmentos começaram a
agir sem uma inter-coordenação, de forma
independente, cada um por si. Eu iniciei um esforço,
e o Paula Motta foi de grande valia nesse sentido,
para agrupar os segmentos, com vistas a uma articulação
política de objetivos comuns. Hoje, a Abic
realiza um evento, o Encafé, que reúne
todos os segmentos, produtores, exportadores, corretores.”
Guilherme Braga Pires, Diretor Geral do CECAFÉ,
foi conclusivo: “As qualidades e virtudes de
Paula Motta são indiscutivelmente todas aquelas
já manifestadas anteriormente. Destaco uma
outra, muito singular. Paula Motta, na expressão
cunhada por Nilo Dante, era um agrônomo multitalentoso.
No Governo, na autarquia cafeeira, o IBC, destacou-se
como Diretor de Produção, exerceu interinamente
a presidência, em várias oportunidades,
e, inclusive, ocupou o cargo de Diretor de Exportação.
Na iniciativa privada, fundou a exportadora Sendas
Trading, a qual dirigiu por três anos. Após,
voltou-se para a indústria de torrefação
e moagem onde foi Superintendente da ABICS. E, finalmente,
voltou ao governo ocupando o cargo de Assessor Especial
do Ministro da Agricultura, nas gestões de
Pratini de Moraes, Roberto Rodrigues e Guedes Pinto,
sendo provavelmente o único exemplo de tanta
versatilidade”.
A pressa editorial não nos permitiu agregar
outros depoimentos, igualmente importantes, mas por
esses já é possível ter uma idéia
das qualidades essenciais de Paula Motta: prudência,
espírito de conciliação, serenidade,
diplomacia, e, claro, uma absoluta integridade moral,
que lhe valeu respeito e amizade duradouras de todo
o agronegócio café. As homenagens à
Motta ainda são incipientes, mas começam
a pipocar por toda a parte. Na última semana,
os empresários Manoel Correa do Lago e Luiz
Otavio Araripe, inauguraram, dentro do programa de
inclusão digital do CECAFÉ, Criança
do Café na Escola, um laboratório de
informática em escola municipal de Bom Jardim/RJ,
que recebeu o nome de Paula Motta. A Fazenda Experimental
de Varginha, que será a sede do Centro Tecnológico
do Café, ora em fase final de criação,
um dos mais importantes do país em matéria
de experimentação do café, terá
o nome de Paula Motta. No anúncio desta homenagem,
durante reunião do CDPC, o secretário-executivo
do Ministério da Agricultura, Silas Brasileiro,
destacou o merecimento de Paula Motta, e afirmou que
“a cafeicultura perde um grande companheiro,
verdadeiro ícone do segmento, por sua luta,
notoriedade e extrema competência”.
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