A
crise estrutural da economia holandesa surgiu a partir
de um “dom” da natureza: o Mar do Norte
dispôs importantes reservatórios de gás
natural que, explorados pela Holanda, deram origem
a uma crescente geração de divisas.
Em consequência, o florin holandês se
valorizou em relação ao dólar
e outras moedas fortes europeias. Os produtos importados
se tornaram progressivamente mais baratos e as importações
forçaram diversas empresas holandesas a paralisarem
a produção local e se converterem em
distribuidoras de produtos importados. Obviamente,
houve uma redução acentuada da capacidade
holandesa de competir com seus outros produtos de
exportação que não o gás.
Como este gerava crescente afluxo de cambiais, a queda
de outras exportações não prejudicou
o balanço comercial holandês. Quando
começou a redução da extração
de gás, afloraram as mazelas de atrofia e desmantelamento
industrial e agrícola realizados com as facilidades
de importação. Na literatura de então,
isto foi denominado de “doença holandesa”.
Historicamente, a América Latina poderia alinhar
múltiplas experiências em que a combinação
de uma exportação “exitosa”
impediu ou destruiu atividades econômicas internas.
A Península Ibérica registrou a decadência
espanhola do Séc. XVIII e a hibernação
portuguesa do século XIX, derivadas do afluxo
de prata e ouro que devastaram as atividades econômicas
peninsulares, deram origem a fortes inflações
e procrastinaram o desenvolvimento industrial.
O Brasil está vivenciando uma variante daquela
“enfermidade holandesa”. Antes da crise
mundial de 2008, as exportações de commodities
(soja, açúcar, algodão, café,
minério de ferro, carnes vermelhas e brancas
etc), beneficiadas por uma demanda internacional crescente,
acompanhada por alta de preços em dólar,
geraram um superávit comercial que valorizou
o real em relação ao dólar. Nas
gôndolas de supermercados e nas vitrines das
lojas, tornou-se possível registrar uma avalanche
de importações de pouca prioridade:
saladas verdes francesas pré-preparadas, guloseimas
de todas as origens, vestidos e calçados de
grifes famosas. Tornou-se freqüente o carro de
alto luxo, e assim por diante.
Como a ampliação da capacidade produtiva
privada persistiu deprimida e o investimento público
continuou atrofiado, gerando gargalos de infra-estrutura,
a economia nacional cresceu pouco. O juro primário
hiper-elevado seduzia excedentes econômicos
para aplicações financeiras e comprimia
o gasto público não-financeiro, obrigando
a economia fiscal a gerar superávits crescentes,
insuficientes para cobrir os juros pagos pelo governo
federal. A dívida pública, ao crescer,
dava origem à ampliação de papéis
que “garantiam” à poupança
financeira rentabilidade certa e saborosas margens
de ganho aos bancos privados. O medíocre crescimento
produtivo fazia um dramático contraste com
a rentabilidade dos agentes do mercado de capitais
e com a progressão de lucros não-operacionais
de algumas empresas privadas. O crédito se
expandia para as compras de bens duráveis pelas
famílias. As modalidades de crédito
consignado faziam das famílias o alvo principal
de crédito. Este fenômeno chegou à
espantosa venda de automóveis em 90 prestações,
sem entrada. É conhecida a desvalorização
de 20% a 25% do valor do veículo zero quilômetro
ao sair da agência revendedora. Mesmo com a
instituição brasileira do “fiel
depositário”, a queda de emprego e de
renda familiar converteria em pó as garantias
fiduciárias.
Em 2009, o Brasil, ao manter elevada sua taxa primária
de juros em um mundo onde os bancos centrais estão
levando a zero suas respectivas taxas de juros, voltou
a ser espaço de aplicações financeiras
especulativas de capital de curto prazo do exterior.
O dólar atingiu, em 4 de dezembro de 2008,
a taxa de R$2,536, mas se desvalorizou em relação
ao real e a taxa de câmbio chegou a R$1,700
no início de outubro de 2009. Os exportadores
brasileiros estão à beira do pânico,
pois prevêem que rapidamente o dólar
venha a atingir R$1,60. No mundo em crise, o preço
das commodities está baixo e a demanda mundial
anêmica.
O caso brasileiro é uma variante da “doença
holandesa”. A variável que valoriza o
real não é a exportação
de commodities, mas sim a chuva de cambiais que ingressam
no Brasil. Entre abril e setembro de 2009, o Banco
Central, tentando evitar a valorização
assustadora do real, adquiriu mais de US$10 bilhões.
Ao fazê-lo, emite reais e vende Títulos
do Tesouro para reduzir a circulação
monetária. Sua recusa em reduzir a taxa de
juros primária e o aumento de reservas internacionais
estimula novas entradas de capitais do exterior. Os
que vieram na frente, ganham, além dos juros,
a valorização do real: quem vai ficar
com o “mico“?
As trombetas em torno do Pré-sal e a consagração
da escolha como sede das Olimpíadas deslocam
o “mico”. O real foi uma das moedas que
mais se valorizou. Isto propõe a ampliação
das importações brasileiras dos EUA,
de países europeus e, principalmente, dos asiáticos,
com a China puxando a enxurrada de supérfluos
para nosso mercado interno e arruinando a presença
brasileira em alguns mercados clássicos para
nossas exportações. O melhor exemplo
é o aço chinês (feito com o minério
de ferro exportado pela Vale) que expulsa nossa siderurgia
do mercado argentino.
A atual valorização do real é
assemelhada à valorização do
florin holandês em passado recente; nossa diferença
reside na intencionalidade com que o Banco Central
mantém a elevada taxa primária de juros
e afirma que a economia brasileira “está
perigosamente aquecida e com risco de ressurgência
inflacionária”.
O Brasil deveria se inspirar na política cambial
chinesa, que mantém o yuan paralelo ao dólar.
A China, ao contrário da Holanda, está
crescendo sua base produtiva e bloqueia as intervenções
especulativas de capital estrangeiros de curto prazo.
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