Com
certa frequência, o agronegócio, diante
de dificuldades objetivas como a valorização
da taxa de câmbio, os elevados juros, o descompasso
de preço dos insumos e do produto final, alto
custo logístico e das pressões comerciais
dos importadores, encontra na renegociação
das dívidas a única alternativa para
o sua continuidade. Porém, deve-se decidir
qual recurso tem maior retorno social: na renegociação
das dívidas ou os investimentos em logística?
Na subvenção ao seguro rural? Na subvenção
ao crédito agrícola?
A proposta mais recente em circulação
no meio cafeeiro é entrar numa nova rodada
de renegociação das dívidas transformando-a
em equivalente-produto, através das Cédulas
do Produto Rural (CPRs), com alongamento para 20 anos
e aval concedido por meio dos recursos correntes depositados
no FUNCAFÉ. A CPR foi criada em 22 de agosto
de 1994 pela Lei nº 8.929, com o objetivo de
permitir ao agropecuarista a emissão do título
para antecipar a venda da produção,
obtendo recursos para custear a safra, mediante a
liquidação física ou financeira
do produto no vencimento.
Acompanhamentos precisos do endividamento existente
junto ao FUNCAFÉ apontam para um montante de
empréstimos da ordem de R$ 3,44 bilhões
distribuídos entre financiamentos em andamento
normal e adimplentes, mais os financiamentos para
a indústria e os securitizados.

Desse
montante, aproximadamente R$ 1,1 bilhão concentra-se
na securitização efetuada em 1996, sendo
que a parte não honrada desses empréstimos
situe-se próximo dos R$ 600milhões.
Algo como R$ 2,2 bilhões a 2,3 bilhões
estão em andamento normal, sendo a maior parte
efetuada na modalidade de empréstimos para
armazenamento da produção, com exíguo
prazo para retornar aos cofres do fundo. Há
ainda uma parte desconhecida da dívida, que
é formada por dois tipos de empréstimos:
a) dos bancos privados com aplicação
das exibilidades, e b) das CPR de gaveta, sendo que
nesse caso grande parte foi honrada.
Nesse sentido, compete a recuperação
do significado em que se traduziu a securitização
do endividamento da agricultura brasileira3. Existe
amplo reconhecimento de que a securitização
do passivo agropecuário, ocorrido por duas
vezes na década de 90, foi uma das alavancas
que impulsionou exponencialmente a obtenção
das seguidas supersafras que se sucederam na década
seguinte. De fato, o equacionamento do endividamento
rural por meio de pesados aportes financeiros pelo
Tesouro permitiu que os produtores mobilizassem novos
recursos para que, com aplicação de
mais tecnologia, os índices de produtividade
das lavouras de escala saltassem para patamares invejáveis.
Disso se conclui que o endividamento crônico
é um elemento que mitiga o crescimento econômico
da agropecuária e, consequentemente, do agronegócio.
Analistas do mercado de café, na construção
de seus cenários futuros, sinalizam que o mundo
vai demandar em 2020 entre 25 a 32 milhões
de sacas a mais do que o volume global atualmente
ofertado. Numa estratégia modesta, ou seja,
para que o Brasil apenas continue mantendo sua atual
fatia nas exportações mundiais, o incremento
de sua oferta deveria atingir entre 8 e 12 milhões
de sacas, ou seja, consiste em internalizar no país
outro estado produtor na mesma magnitude do Espírito
Santo4. A criação de formas para a superação
do contexto do endividamento da cafeicultura seria
um importante pilar para o êxito dessa estratégia.
Outra observação diz respeito aos cafeicultores
de médio porte situados em regiões montanhosas
e com limitações para o aprofundamento
da mecanização das operações
de manejo e colheita. Também aqui há
um consenso de que nesse grupo estão os mais
sérios problemas com o endividamento por duas
razões: a) pequena escala produtiva e b) relação
de produção de tipo empresarial/patronal.
Assim, equacionar a dívida pode trazer um soerguimento
dessa parcela da cafeicultura que, atualmente, se
encontra posicionada na franja de exclusão
do agronegócio café.
A somatória de ambos os destaques constituem-se
em aspectos positivos da proposta de trocar a dívida
do segmento por CPR. Outro argumento pró-permuta
consideraria que os gastos atuais em subvenção
com política cafeeira seriam substituídos
pela engenharia financeira proposta. O desembolso
com as subvenções (PEPRO e opções),
embora pequeno frente as exigências financeiras
necessárias para o aceite do sistema financeiro,
poderia ser redirecionado para equalização
do estoque de dívida apontada pelos bancos,
sem comprometer eventual decisão governamental
de se recompor estoques do produto, desde que associada
com regras claras para sua desova.
Assim, trocar a dívida por CPR oferece essas
vantagens. Porém, sem contemplar os aspectos
negativos dessa demanda, não se é possível
firmar um posicionamento formal sobre o tema. Sobre
os aspectos contrários à proposta passa-se
a debruçar o estudo.
Normalmente, as renegociações de débitos
contratuais geram uma aversão ao segmento por
parte do sistema financeiro. O inadimplemento dos
contratos, ainda que equalizados pelo Tesouro, implicam
em incremento da aversão dos bancos ao segmento
e isso pode trazer, a curto e médio prazo,
problemas de liquidez para a atividade. Ainda que
o BACEN obrigue as instituições financeiras
a aplicarem suas disponibilidades no crédito
rural, em alguns casos, pode revelar-se mais interessante
aos bancos em recolher sua cota das exigibilidades
ao invés de alocar no café seus depósitos.
Ademais, o que a proposta omite é para quem
restaria o carrego do ônus financeiro da proposta,
ou seja, sobre o montante da dívida existe
um compromisso financeiro real (juros, mora, prêmio
de seguro, emolumentos, taxas de registro, impostos)
sobre o qual as instituições financeiras
não podem abrir mão. Assim, caberia
ao Tesouro o suporte para a equalização
dessas receitas financeiras cessantes mediante a sua
transformação em CPR. Grosseiramente,
pode-se imaginar que para indenizar as receitas cessantes
dos bancos algo como outro FUNCAFÉ seria necessário
somente para atender a esses compromissos. Como na
cabeça de quem formula tal proposta a bolsa
da viúva assemelha-se a caixa de Pandora, que
se adiante a proposta!
O Estado brasileiro, desde os anos 90 padece de crise
fiscal cuja solução tem sido o incremento
incessante da carga tributária especialmente
sobre a classe média. Alíquota tributária
acima dos 32% para o estágio de desenvolvimento
do Brasil é um achaque, nisso concordam 100%
dos economistas. Assim, ao criar um novo compromisso
financeiro para a União, os autores da proposta
deveriam apontar de onde é que saíram
tais recursos. Caso sejam capazes de reunir força
política para reorientar o gasto público,
resta aos contribuintes arcar com mais esse ônus.
Outro aspecto que desperta atenção é
a escolha do prazo de 20 anos para quitação
do passivo por meio da entrega de produto. Por que
não um prazo de 10 anos? O custo para a sociedade
seria muito menor e qualquer cafeicultor tem condições
de assumir um compromisso de entregar 10% por safra.
Evidentemente que a opção por percentuais
mais elevados implica no aumento do risco de que distúrbios
climáticos possam comprometer fluxo normal
dos compromissos. Assim, o incremento dos percentuais
para um patamar socialmente aceitável, digamos,
20%, demandaria a plena estruturação
de política de seguro a custo de prêmio
competitivo e o fundo de catástrofe. Com esse
aparato de políticas a conversão das
dívidas em CPR para quitação
em 5 anos teria alguma chance de êxito.
A arquitetura financeira para a viabilização
do pleito somente seria justificável mediante
a definição de parâmetros técnicos
de produtividade e de qualidade do café. Promover
o acerto do passivo para a fatia não competitiva
da cafeicultura seria comprovação da
falta de inteligência do gestor público.
Nos tempos atuais não há mais como se
perpetuar a ineficiência, mesmo reconhecendo
que não faz sentido a busca da obtenção
da máxima eficiência produtiva, levando
o aprimoramento tecnológico ao limite, se os
resultados obtidos em termos de produção
física não corresponderem a resultados
econômicos consistentes5. Disso resulta a necessidade
de remodelar a forma de comercialização
valorizando crescentemente a venda futura e os títulos
financeiros como o Certificado de Depósito
Agropecuário(CDA) e Warrrant Agropecuário
(WA).
A própria Cédula do Produtor Rural não
é um título apropriado para esse tipo
de proposição, pois é um título
de curto prazo (vale apenas para uma safra). Mais
talhado para esse tipo de negociação
seria o CDA, pois se trata de um título de
produto destinado a ser empregado quando o produto
foi colhido e se encontra armazenado. Ademais, por
meio do CDA e seu título gêmeo o WA,
a CONAB poderia negociá-los junto ao sistema
financeiro com taxa de deságio menor do que
uma CPR cujo risco embutido é muito mais elevado.
Menos deságio significa menos dependência
do Tesouro para equalizar as perdas e maior possibilidade
de êxito na tentativa de trocar dívida
por CPR.
A estratégia utilizada pelas economias mais
avançadas para seu setor agroindustrial consiste
em reduzir a volatilidade da renda dos produtores,
para que eles tenham um desenvolvimento mais sustentado.
A forma de atingir essa condição está
em aprimorar o instrumento de seguro contra riscos
climáticos, com parcela do prêmio ancorada
em subvenção pública e privada;
dar acesso ao seguro de preço (hedge do produto
e hedge cambial); melhorar a logística e reduzir
a volatilidade do preço dos insumos. Para essa
nova realidade, inclusive a cafeicultura precisa se
preparar. As subvenções à agricultura
sempre exibem uma conta a pagar sem que se saiba ao
certo qual o retorno social real dessas despesas.
Contar permanentemente com o “bolsa viúva”
é que não pode mais ser.
Celso Luis Rodrigues Vegro
Engenheiro Agrônomo, MS Desenvolvimento, Agricultura
e Sociedade e Pesquisador Científico VI –
IEA/SP — celvegro@iea.sp.gov.br
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